Por Aline dos Reis Matheus em Abril de 2018
O clamor hegemônico pela qualidade da educação esconde diferentes visões, concepções e interesses de diversos atores da sociedade. Afinal, o que é educação de qualidade? Excelência ou equidade, educação para o mercado ou para transformação da sociedade, controle centralizado ou autonomia das unidades escolares? Desenvolvimento de competências ou transmissão da cultura? Representatividade de “grupos minoritários”? Formação humanitária? Formação profissional? O consenso total é impossível e isso é uma marca das sociedades democráticas, em que o projeto de sociedade é sempre objeto de disputa e as visões divergentes se articulam num equilíbrio quase sempre provisório. A discussão que antecedeu a homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) certamente é um exemplo desse tipo de disputa.
Nessa discussão, concorreram diferentes projetos educativos – não necessariamente de forma equitativa, é importante dizer, dadas as diferenças de força política dos diversos envolvidos. Assim, a BNCC, tal como se constitui, expressa concepções e visões que estão longe de serem consensuais.
A Base procura responder, da perspectiva curricular, à alardeada crise da educação, por meio de uma lógica que privilegia certo controle centralizado dos processos educativos. Subjacente a ela parece estar a noção de accountability – termo inglês que se refere à responsabilização ou à prestação de contas, tanto a instâncias de controle quanto à sociedade em geral. Ou seja, a ideia é de que é preciso que a educação – especialmente a educação pública – preste contas à sociedade sobre se está formando adequadamente os jovens. Obviamente, é a própria Base que estipula o que seria esse “adequadamente”. Uma vez estabelecidos e detalhados os objetivos de aprendizagem que devem ser buscados em todas as salas de aula do país, fica também estabelecida a principal referência, ou a noção de qualidade, que pode orientar tanto políticas de avaliação quanto de produção de materiais didáticos, passando por formação de professores.
Para seus defensores, essa possibilidade de controle é um dos grandes méritos da Base, pois, frente aos diversos problemas educacionais atuais, ela seria uma referência segura sobre a qual todos os profissionais deveriam trabalhar, garantindo que todos os alunos tenham acesso a um núcleo curricular comum. Para seus detratores, esse é, justamente, o principal ponto de crítica – o alto grau de detalhamento dos objetivos de aprendizagem da Base restringiria a autonomia das unidades escolares e dos professores na complexa tarefa de educar. E, além disso, reforçaria uma tendência problemática de reduzir o currículo efetivamente praticado a tais objetivos, uma vez que eles são passíveis de serem avaliados por avaliações padronizadas.
De qualquer forma, a BNCC foi homologada e o jogo democrático impõe a todos uma obrigação para com ela. Por isso, tanto aos seus defensores quanto aos seus detratores, propomos uma breve reflexão: em que medida a BNCC e o controle que pressupõe realmente transformarão o trabalho educativo nas escolas? A discussão acalorada não estaria deixando de lado a inescapável subjetividade envolvida na ação educativa?
Obviamente, não se pode minimizar a importância do documento, dado que se desdobrará em material didático, em formação docente e em avaliações – que, sabemos, são indutoras de atitudes. Porém, a educação baseia-se em relações humanas cheias de imprevisibilidade. O professor precisa avaliar, a todo momento, as situações educativas em que se encontra junto de seus alunos e, frente a elas, precisa tomar uma série de decisões. Necessariamente, ele só pode agir a partir de suas próprias crenças, concepções e saberes. No sentido proposto por Perrenoud, o professor precisa ser um profissional, a quem não se pode prescrever regras estritas, por serem inócuas frente à complexidade de sua tarefa.
Concordamos com Perrenoud com relação a esse tema e, por isso, concluímos que, qualquer que seja a noção de qualidade em pauta, ela não se estabelece sem se infiltrar profundamente no tripé professor-saber-aluno. O movimento a ser engendrado pela BNCC terá força para transformar a relação do professor com o saber que ensina? Essa transformação alcançará a relação do aluno com o saber que precisa aprender?
Tomemos como exemplo uma das habilidades previstas pela BNCC para o 1º ano do Ensino Fundamental em Matemática:
- (EF01MA08) Resolver e elaborar problemas de adição e de subtração, envolvendo números de até dois algarismos, com os significados de juntar, acrescentar, separar e retirar, com o suporte de imagens e/ou material manipulável, utilizando estratégias e formas de registro pessoais.
Essa habilidade está descrita dentro da unidade temática “Números”, ligada ao seguinte objeto de conhecimento:
- Problemas envolvendo diferentes significados da adição e da subtração (juntar, acrescentar, separar, retirar).
Em que medida o professor, ao ler essa habilidade e esse objeto de conhecimento, partilha com o especialista que os redigiu a mesma concepção de resolução de problemas? Qual é o conhecimento de Didática da Matemática que moldará a forma como o professor entende e vai em busca desse objetivo? Será que o professor conhece, por exemplo, a noção de campos conceituais, cunhada por Gérard Vergnaud, e que embasa a forma como o objeto de conhecimento foi redigido? Caso conheça essa noção, será que se orienta por ela em seu trabalho com o tema ou será que se vale de alguma outra referência? Seria essa outra possível referência apenas empírica ou estaria ela atrelada a alguma teoria didática?
Se o professor tem um conhecimento profundo da didática daquilo que ensina, se está atento às discussões em pauta em sua área, se reflete constantemente sobre sua prática, então ele provavelmente atua como um profissional (novamente no sentido proposto por Perrenoud), com autonomia frente aos desafios que se colocam em seu cotidiano. Para esse profissional, que provavelmente já desenvolve um trabalho educativo potente, não nos parece que haverá grandes dificuldades ou prejuízos em fazer os ajustes requeridos pela implementação da Base. Mas, mesmo se houver, confiamos que ele terá voz para posicionar-se de forma eficaz a respeito dos problemas.
Entretanto, e se ao professor faltar esse tipo de conhecimento? Como as ações em torno da BNCC poderão contribuir com seu desenvolvimento profissional, acrescentando novos saberes ao seu repertório e conferindo real autonomia ao seu trabalho?
A formação docente, a partir de uma perspectiva de empoderamento profissional dos professores, necessariamente tem de se calcar não apenas no saber específico acerca daquilo que ensina, mas também de como se ensina e de como se avalia, na reflexão constante sobre a prática, a partir do estudo aprofundado dos construtos específicos da Educação.
Para nós, esse é o desafio que precisa ser enfrentado. E não é um desafio novo. Muitas têm sido, na história da educação brasileira, as propostas concebidas por especialistas – com as mais diferentes visões e concepções –, mas elas costumam chegar às salas de aula com força exaurida e, por vezes, às avessas. Claro que parte do problema relaciona-se com a unidirecionalidade das decisões, já que ainda é baixa a efetividade das iniciativas para inclusão dos professores no desenho das propostas. Mas não se pode deixar de constatar, na lida diária no campo educacional, que o problema também relaciona-se às fragilidades que cercam a atuação profissional do professor.
Assim, a resposta ao título desse post está para ser construída. É possível fazer da BNCC uma oportunidade para o fortalecimento da profissionalização docente? Nossas melhores esperanças estão depositadas em todos aqueles que, comprometidos com esse propósito, buscarão fazer da Base uma oportunidade.
Aline dos Reis Matheus
Diretora Educacional Academia Primeira Escolha