Primeira Escolha - Avaliação em Pauta

Competências e habilidades na BNCC

Escrito por Aline dos Reis Matheus | 27/08/2018 21:19:25

A recém homologada BNCC do Ensino Fundamental organiza-se por competências e habilidades. Como já discutimos em outro artigo, essa opção (assim como outras que o documento faz) está longe de ser consensual, embora seja uma tendência que tem pautado orientações curriculares no Brasil e em outros países há muitos anos.

Os detratores da organização por competências procuram reduzi-la a uma mera subordinação da educação à lógica da economia e do mundo do trabalho. No entanto, como salienta Perrenoud, já no fim da década de 1990 do século passado“seria muito restritivo fazer do interesse do mundo escolar pelas competências o simples sinal de sua dependência em relação à política econômica. Há antes uma junção entre um movimento a partir de dentro e um apelo de fora.”. Esse movimento a partir de dentro apoia-se na percepção de muitos de que a finalidade última da educação – especialmente em uma época em que a informação se acumula vertiginosamente – é que os educandos construam um amplo espectro de competências para agir no e sobre o mundo –  o que obviamente não os dispensa de acumular conhecimentos sobre ele.

Mas quais competências são desejáveis para agir no e sobre o mundo? As respostas nunca serão neutras, ao contrário: vão expressar um projeto de sociedade e, portanto, um projeto de indivíduo, destacando certos valores em detrimento de outros. O projeto de sociedade e de indivíduo que norteia a BNCC se expressa especialmente por meio das:

Dez competências estabelecidas para a Educação Básica
  1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.
  2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas.
  3. Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural.
  4. Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo.
  5. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.
  6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.
  7. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta.
  8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas.
  9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza.
  10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários.

 
Essas dez competências, entretanto, por sua natureza demasiado ampla, não podem fazer mais que explicitar um ideal de indivíduo. Embora isso seja essencial, é certamente insuficiente para orientar a ação pedagógica nas escolas. Dessa forma, o documento desdobra-se em competências de área, que, por sua vez, desdobram-se em competências próprias de cada componente curricular. Mas a parte que toca mais diretamente a ação do professor em sala de aula é aquela que destrincha as habilidades – que, supostamente, permitem desenvolver e expressar as competências disciplinares –, organizadas por meio de sua relação com unidades temáticas e objetos de conhecimento, conforme se vê no esquema a seguir.

Essa estrutura pode acabar permitindo que as equipes pedagógicas nas escolas tenham um olhar mais pragmático para a BNCC, coloquem pouco foco nas competências, observando quase que exclusivamente as habilidades, as unidades temáticas e objetos de conhecimento. O prejuízo de abordar a BNCC dessa forma fragmentada é exemplificado a seguir:

Tomemos a habilidade de Matemática EF05MA06, prevista para o 5º ano do EF, que está dentro da unidade temática Números e relacionada ao cálculo de porcentagens e representação fracionária:

  • EF05MA06 - Associar as representações 10%, 25%, 50%, 75% e 100% respectivamente à décima parte, quarta parte, metade, três quartos e um inteiro, para calcular porcentagens, utilizando estratégias pessoais, cálculo mental e calculadora, em contextos de educação financeira, entre outros.


Para o desenvolvimento dessa habilidade, pode-se pensar em propor aos alunos uma sequência didática bastante 
tradicional, com exposições que expliquem e com exercícios que automatizem a associação referida (10% é a décima parte; 25% é a quarta parte etc). A utilização de estratégias pessoais, de cálculo mental e calculadora, bem como a aplicação desse conhecimento em contextos de educação financeira devem estar presentes para fazer jus ao texto da habilidade, mas podem adquirir um caráter meramente ilustrativo e secundário.

A perspectiva  sobre essa habilidade – e consequentemente a abordagem para o seu desenvolvimento – é completamente alterada quando buscamos responder às seguintes questões: essa habilidade contribui para o desenvolvimento de quais competências da Matemática? De que forma? As conexões – que não estão dadas de partida pelo documento – são múltiplas. Por exemplo, como essa habilidade pode ajudar a desenvolver a competência 4 prevista para a Matemática? E como se relaciona com a competência 6 dessa mesma componente?

  • Competência 4 – Fazer observações sistemáticas de aspectos quantitativos e qualitativos presentes nas práticas sociais e culturais, de modo a investigar, organizar, representar e comunicar informações relevantes, para interpretá-las e avaliá-las crítica e eticamente, produzindo argumentos convincentes.

  • Competência 6 – Enfrentar situações-problema em múltiplos contextos, incluindo-se situações imaginadas, não diretamente relacionadas com o aspecto prático-utilitário, expressar suas respostas e sintetizar conclusões, utilizando diferentes registros e linguagens (gráficos, tabelas, esquemas, além de texto escrito na língua materna e outras linguagens para descrever algoritmos, como fluxogramas, e dados).

Quando as habilidades da Base são vistas como caminhos para o desenvolvimento das competências, a inserção do conhecimento escolar nas práticas sociais, em contextos diversos, ganha relevância. Quando observadas de forma fragmentada, é mais provável que as práticas tradicionais sigam inalteradas, reduzindo o impacto da Base na desejada transformação da Educação.

 

 

 

Aline dos Reis Matheus
Diretora Educacional da Primeira Escolha.