A recém homologada BNCC do Ensino Fundamental organiza-se por competências e habilidades. Como já discutimos em outro artigo, essa opção (assim como outras que o documento faz) está longe de ser consensual, embora seja uma tendência que tem pautado orientações curriculares no Brasil e em outros países há muitos anos.
Os detratores da organização por competências procuram reduzi-la a uma mera subordinação da educação à lógica da economia e do mundo do trabalho. No entanto, como salienta Perrenoud, já no fim da década de 1990 do século passado, “seria muito restritivo fazer do interesse do mundo escolar pelas competências o simples sinal de sua dependência em relação à política econômica. Há antes uma junção entre um movimento a partir de dentro e um apelo de fora.”. Esse movimento a partir de dentro apoia-se na percepção de muitos de que a finalidade última da educação – especialmente em uma época em que a informação se acumula vertiginosamente – é que os educandos construam um amplo espectro de competências para agir no e sobre o mundo – o que obviamente não os dispensa de acumular conhecimentos sobre ele.
Mas quais competências são desejáveis para agir no e sobre o mundo? As respostas nunca serão neutras, ao contrário: vão expressar um projeto de sociedade e, portanto, um projeto de indivíduo, destacando certos valores em detrimento de outros. O projeto de sociedade e de indivíduo que norteia a BNCC se expressa especialmente por meio das:
Dez competências estabelecidas para a Educação Básica
Essas dez competências, entretanto, por sua natureza demasiado ampla, não podem fazer mais que explicitar um ideal de indivíduo. Embora isso seja essencial, é certamente insuficiente para orientar a ação pedagógica nas escolas. Dessa forma, o documento desdobra-se em competências de área, que, por sua vez, desdobram-se em competências próprias de cada componente curricular. Mas a parte que toca mais diretamente a ação do professor em sala de aula é aquela que destrincha as habilidades – que, supostamente, permitem desenvolver e expressar as competências disciplinares –, organizadas por meio de sua relação com unidades temáticas e objetos de conhecimento, conforme se vê no esquema a seguir.
Essa estrutura pode acabar permitindo que as equipes pedagógicas nas escolas tenham um olhar mais pragmático para a BNCC, coloquem pouco foco nas competências, observando quase que exclusivamente as habilidades, as unidades temáticas e objetos de conhecimento. O prejuízo de abordar a BNCC dessa forma fragmentada é exemplificado a seguir:
Tomemos a habilidade de Matemática EF05MA06, prevista para o 5º ano do EF, que está dentro da unidade temática Números e relacionada ao cálculo de porcentagens e representação fracionária:
Para o desenvolvimento dessa habilidade, pode-se pensar em propor aos alunos uma sequência didática bastante tradicional, com exposições que expliquem e com exercícios que automatizem a associação referida (10% é a décima parte; 25% é a quarta parte etc). A utilização de estratégias pessoais, de cálculo mental e calculadora, bem como a aplicação desse conhecimento em contextos de educação financeira devem estar presentes para fazer jus ao texto da habilidade, mas podem adquirir um caráter meramente ilustrativo e secundário.
A perspectiva sobre essa habilidade – e consequentemente a abordagem para o seu desenvolvimento – é completamente alterada quando buscamos responder às seguintes questões: essa habilidade contribui para o desenvolvimento de quais competências da Matemática? De que forma? As conexões – que não estão dadas de partida pelo documento – são múltiplas. Por exemplo, como essa habilidade pode ajudar a desenvolver a competência 4 prevista para a Matemática? E como se relaciona com a competência 6 dessa mesma componente?
Quando as habilidades da Base são vistas como caminhos para o desenvolvimento das competências, a inserção do conhecimento escolar nas práticas sociais, em contextos diversos, ganha relevância. Quando observadas de forma fragmentada, é mais provável que as práticas tradicionais sigam inalteradas, reduzindo o impacto da Base na desejada transformação da Educação.
Aline dos Reis Matheus
Diretora Educacional da Primeira Escolha.